“Memórias póstumas de Brás Cubas” figura entre os cinco livros que, segundo Woody Allen, mais impactaram a sua vida como diretor de cinema e humorista.
Assim ele comenta essa experiência literária:
“Recebi o livro pelo correio, enviado por um desconhecido, que me escreveu: Você vai gostar disso.
Eu li, e fiquei impressionado com o quanto a história era charmosa e divertida. Não podia acreditar que o autor tivesse vivido há tantos anos atrás. A gente pensa que o livro foi escrito ontem. É extremamente moderno e divertido, um trabalho realmente original. Foi como se tocasse um sino dentro de mim, da mesma forma que “O apanhador do campo de centeio “ fez quando eu tinha 18 anos. São assuntos de que eu gosto e foram tratados com grande inteligência, grande originalidade e sem sentimentalismo.”
“Epitaph of a Small Winner” (‘Epitáfio para um pequeno vencedor’) é o título pífio que o tradutor americano deu ao livro de Machado. E, para não chocar a sensibilidade dos leitores americanos, ou por julgá-la de mau gosto, não colocaram na tradução a célebre dedicatória:
Releio meu livro, já muito manuseado e grifado, e constato que realmente o humor de Woody Allen é muito parecido ao de Machado de Assis. A história começa pelo fim “morri de uma pneumonia”e logo na primeira página, assim Brás Cubas descreve o próprio enterro:
“E foi assim que cheguei à clausura dos meus dias; foi assim que me encaminhei para o undiscovered country de Hamlet, sem as ânsias nem as dúvidas do moço príncipe, mas pausado e trôpego, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã Sabina, a filha…” Ironiza: O meu óbito não era coisa altamente dramática. Um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos não parece que reúna em si os elementos de um tragédia. // Ao contar seu delírio antes de morrer, diz que viu o desfile de todos os séculos passados: “Cada século trazia a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro, e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões.” // Só então começa a contar sua vida desde a infância. Na mocidade, sustentou uma bela moça: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. // Falando da Universidade, em Portugal “decorei-lhe só as fórmulas,o vocabulário, o esqueleto.Tratei-a como tratam o latim: embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e políticas, para as despesas da conversação… Volta ao Brasil e começa uma vida folgada e livre. Digam o que quiserem dizer os hipocondríacos: a vida é uma coisa doce. // O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor. Virgília era um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! // Hesitando se viajava ou não: “Era o caso de Hamlet: embarcar ou não embarcar. // Quem escapa a um perigo ama a vida com outra intensidade. // A transmissão da vida é a hora suprema da missa espiritual. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: não nascer. // Antes cair das nuvens que de um terceiro andar. // Matamos o tempo; ele nos enterra.
Através deste romance, descobrimos muito sobre as leituras de Machado de Assis – e os autores estrangeiros ele lia no original, pois dominava o francês, o inglês… Para contar como baixaram seu corpo à sepultura, refere-se a Hamlet – leu, na verdade, e deve ter relido, toda a obra de Shakespeare. Antes disso, cita, num prefácio de dois parágrafos, três escritores: Sthendhal, Sterne, Xavier de Maistre. No capítulo IV aparecem os políticos Cavour e Bismarck, Cromwell. Os romanos: “Suetônio deu-nos um Cláudio, que era um simplório – ou uma ‘abóbora’, como lhe chamou Sêneca, e um Tito, que merecer ser as delícias de Roma.Outro capítulo tem o título em francês, tirado do livro EL CID, de Corneille: Chimène, qui l’eût dit? Rodrigues, qui leût cru”? (Jimena, que lhe disse? Rodrigo, que lhe acreditou?) S. Tomás, o mito de Pandora, Jó, os Hebreus no cativeiro. Tartufo, Cleópatra, a Escritura, Constantino, Alexandre, César, Cícero, Adão, Caim. Peças de Teatro: Maria Joana, Safo, Ana Bolena, Ernani. Norma.// Sua descrição de um aborto natural: Foi-se o embrião naquele ponto em que não se distingue Laplace de uma tartaruga. // Os Lusíadas, Shakespeare (sempre), Reochefoucauld, Proudhon, Aquiles, Erasmo, Diógenes… Compara-se a Lady Macbeth e diz ser o oposto dela: não tem remorsos. Há que buscar o ludismo. “Trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio a fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, trata de aproveitá-la.
A apresentação abaixo foi transcrita da página
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Em 1881, Machado de Assis lançou aquele que seria um divisor de águas não só em sua obra, mas na literatura brasileira: Memórias póstumas de Brás Cubas. Ao mesmo tempo em que marca a fase mais madura do autor, o livro é considerado a transição do romantismo para o realismo. Num primeiro momento, a prosa fragmentária e livre de Memórias póstumas, misturando elegância e abuso, refinamento e humor negro, causou estranheza, inclusive entre a crítica. Com o tempo, no entanto, o defunto autor que dedica sua obra ao verme que primeiro roeu as frias carnes de seu cadáver tornou-se um dos personagens mais populares da nossa literatura. Sua história, uma celebração do nada que foi sua vida, foi transformada em filmes, peças e HQs, e teve incontáveis edições no Brasil e no mundo, conquistando admiradores que vão de Susan Sontag a Woody Allen. Esta edição reproduz o prólogo do próprio autor à terceira edição do livro, em que ele responde às dúvidas dos primeiros leitores. Traz ainda prefácio e notas de Marta de Senna, cocriadora e editora da revista eletrônica Machado de Assis em Linha, e Marcelo Diego, pesquisador da obra de Machado na Universidade Princeton.
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